Introdução
A cobrança de dívidas por parte da Fazenda Pública pode ter duas fases: a administrativa e a judicial. Na fase administrativa é feito o lançamento do tributo com a inscrição em dívida ativa do mesmo. Durante a etapa judicial - se o devedor ainda não quitou a dívida - a Fazenda Pública, através de procurador, recorre ao Judiciário para efetuar a execução - cobrança - do valor devido.
Durante a fase administrativa, o Fisco pode notificar o devedor para que pague a dívida, pode inscrever o nome do devedor nos cadastros de devedores e, caso essas providências não sejam eficazes para pressionar o contribuinte inadimplente a pagar, pode remeter a certidão de dívida ativa para seus procuradores para que estes tomem as providências judiciais.
Quando a cobrança de uma dívida tributária chega ao Judiciário, o juiz, que apesar de ser um funcionário do próprio Estado, tem o dever de atuar com imparcialidade, deve possibilitar ao devedor que contrate um advogado para defender os seus interesses. Assim, caso o fato gerador do imposto não tenha ocorrido, ou caso a situação do devedor se enquadre em uma exceção à norma tributária invocada pela Fazenda, ou, ainda, caso a penhora tenha recaído sobre algum bem impenhorável, o juiz deverá, após ouvidas ambas as partes, declarar a inexistência do crédito tributário, extinguir o processo ou determinar o levantamento da penhora.
Essas garantias que o devedor tem são o resultado de um longo processo histórico em que o Estado almejou o poder absoluto sobre os cidadãos e estes, por sua vez, lutaram pela limitação do poder estatal. A Carta Magna, assinada pelo rei João Sem Terra em 1215 na Inglaterra, foi o primeiro documento em que se procurou limitar o poder do estado, especialmente em relação aos aspectos tributários.
Porém atualmente o estado brasileiro tem tomado medidas que vão no sentido contrário, buscando, através de leis, retirar as garantias dos contribuintes.
Bloqueio administrativo de bens
Recentemente foi sancionada a lei federal 13.606 de 2018, que, contrariando as normas legais e constitucionais que mencionaremos adiante, autoriza a Fazenda Pública federal a bloquear os bens dos devedores na fase administrativa sem autorização judicial.
A norma em questão informa que, inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados.
Estabelece ainda que, não pago o débito no prazo de cinco dias, a Fazenda Pública poderá:
a) comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e
b) averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis (averbação pré-executória).
Tal dispositivo afronta a Constituição Federal inclusive cláusulas consideradas pétreas (normas constitucionais imutáveis, que sequer podem ser objeto de deliberação de proposta de emenda).
A CF/88 determina no seu artigo 5º a garantia ao direito de propriedade e ao devido processo legal, nos seguintes termos:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”
Deve-se observar que o direito de propriedade se subdivide no direito de usar, gozar e dispor e no direito de reaver a coisa do poder de quem injustamente a ocupe, conforme disposto no artigo 1.228 do Código Civil:
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Por sua vez, o direito de dispor, significa o direito de abusar da coisa, o direito de alienar o bem, reformá-lo e até destruí-lo.
Para que o Estado prive um proprietário dos seus bens, inclusive retirando dele o direito de alienar o que possui, é obrigatório o transcurso do devido processo legal. Até porque um bem indisponível não pode ser alienado.
E o que é devido processo legal? É o princípio que garante a todos o direito a um processo com todas as etapas previstas em lei, dotado de todas as garantias constitucionais. Por processo, deve-se entender processo judicial.
Portanto, a chamada averbação auto-executória, que permite que a Fazenda Nacional torne indisponível o bem sem o devido processo legal é inconstitucional, pelas razões acima expostas.