Lei Simplificada

sábado, 27 de dezembro de 2014

Estado de perigo

        Pedro, cujo filho estava em risco de vida e precisava urgentemente de uma cirurgia cara, decidiu vender o seu carro, cujo valor de mercado era de R$ 40.000,00. Comunicou a situação a Paulo, que se aproveitou da situação desesperadora do outro e fez uma oferta de R$ 20.000,00 pelo veículo. Como a situação de saúde de seu filho era tão grave que não podia esperar vários anos para obter a cirurgia pelo SUS, Pedro vendeu o carro por R$ 20.000,00.
       
     Ora, depois de fazer a cirurgia, Pedro pode, se o desejar, ajuizar uma ação contra Paulo requerendo ao juiz a anulação do negócio, pois, ao celebrá-lo, sua declaração de vontade estava viciada pelo estado de perigo. Ou seja: se não fosse a situação de perigo iminente - conhecida pelo outro contratante, que se aproveitou dela para obter uma vantagem excessiva com o negócio -, Pedro não venderia o seu carro, ou o venderia pelo valor de mercado. 

         Quando duas ou mais pessoas celebram um contrato, o mesmo deve preencher alguns requisitos para que seja considerado juridicamente existente, válido e eficaz. A vontade das partes deve ser manifestada livre e conscientemente, ou seja: cada contratante deve saber exatamente a que está se obrigando e não pode ser 'forçado' a contratar. 

      Algumas pressões são admitidas implicitamente pelo ordenamento jurídico - publicidade, insistência -, outras não. Conforme o Código Civil atual - em vigor desde 2003 -, ninguém pode se aproveitar de uma situação de estado de perigo para impôr a outrem um contrato que seja excessivamente vantajoso para si e excessivamente prejudicial para a outra parte. 

         Na hipótese acima, Pedro pode pedir a anulação do negócio, devolvendo o valor pago por Paulo e retomando o veículo, ou a complementação do valor do carro. Qual dessas alternativas será definida na sentença? Aí vai depender do entendimento do juiz que julgar a ação.

Veja também: a utilidade do inventário

  

sábado, 20 de dezembro de 2014

Resolvendo uma situação fora do Judiciário

          

          O Sr. Eugênio procurou o advogado Pandolfo e lhe narrou a seguinte situação: "doutor, eu moro com minha esposa e meu filho de 27 anos em uma casa de dois quartos". "Há uma semana uma garota de 13 anos, vizinha nossa, saiu da casa dos tios onde residia e pediu para ficar uns dias na nossa casa".

          "Eu não estava em casa quando ela chegou". "Minha esposa a instalou no quarto do nosso filho". "Quando cheguei em casa e vi a situação fiquei preocupado, pois, se meu filho tiver relações sexuais com ela, poderá se complicar com a Justiça, afinal, ela tem menos de 14 anos". Pra piorar a situação, eu e minha esposa ficamos fora de casa o dia todo trabalhando e o meu filho, que está de férias, passa o dia em casa. 

            "Pedi à garota que ela voltasse para a casa do tio e ela não quis ir". "Minha esposa quer que ela fique conosco para ajudar no serviço doméstico". "Temo que isso possa nos custar uma ação trabalhista futuramente, isso se nós não formos acusados de permitir que a menina fosse abusada sexualmente em nossa casa". "Expliquei tudo isso para o tio dela e pedi que ele a pegasse de volta, mas ele fez pouco caso".

       Orientado pelo advogado, o Sr. Eugênio enviou uma carta ao tio da menina através do Tabelionato de Registro de Títulos e Documentos, fixando prazo para que ele levasse a garota de volta para casa. Poucos dias depois o Sr. Eugênio telefonou para o advogado: "doutor, o Fulano levou a garota de volta pra casa no outro dia e a situação está resolvida".

        Assim como o caso narrado acima, a interpelação extrajudicial pode ser usada para muitas finalidades: cobrança de dívidas, exigência de cumprimento de contratos, exigência de pedido de desculpas ou outra atitude qualquer. Tal procedimento, logicamente, não funciona em 100% dos casos, mas, quando funciona, evita-se de ter que ajuizar uma ação judicial contra a outra pessoa, envolvendo o Poder Judiciário e fazendo as partes perderem tempo, se estressarem e gastarem com custas e honorários.

          O procedimento é simples: escreve-se uma carta e se envia a mesma através do Tabelionato de Registro de Títulos e Documentos. O teor da carta vai variar conforme a situação, mas, à guisa de sugestão, pode ser assim: 

          No alto da carta (que deve ser digitada ou datilografada), se põe o nome completo do remetente e do destinatário (De:; Para:). Abaixo deve vir o título notificação (em letra maiúscula) e então o texto. No corpo do texto, deve-se narrar a situação, a pretensão do remetente e o prazo fixado para que o destinatário tome a atitude desejada. É de bom alvitre avisar que, se o destinatário não resolver a situação no prazo, o remetente tomará as medidas judiciais cabíveis

         Há pessoas que não se importam se forem processadas, mas outras ficam em pânico diante da mera possibilidade disso acontecer. Se o destinatário da interpelação for de uma índole parecida com a desse último grupo, a medida pode surtir efeito.

Veja também: estado de perigo

sábado, 13 de dezembro de 2014

Responsabilidade civil III: culpa e dolo

Atenção: para compreender melhor o texto abaixo, é necessário ler primeiro este aqui.

Introdução  


          O ato ilícito doloso ou culposo, tanto por ação (conduta comissiva) como por omissão (conduta omissiva), gera responsabilidade. O ilícito civil só gera, a princípio, efeitos civis, ou seja: o dever de restituir a coisa lesada ao estado que era antes, enquanto que o ilícito penal gera efeitos civis, penais e, conforme o caso, administrativos - por exemplo: o funcionário público condenado por peculato pode, como consequência da condenação, ser demitido de sua função -.

Responsabilidade objetiva da pessoa jurídica


          Todo ato ilícito civil cometido por um funcionário público ou funcionário de empresa privada deve ser indenizado. Basta que a vítima demonstre a culpa do preposto ou do funcionário que provocou o dano e o Estado e/ou a empresa responderão objetivamente, ou seja: independentemente de culpa.

Responsabilidade subjetiva da pessoa física


       Já a pessoa física que comete um ato ilícito - tanto penal quanto civil - só responderá pelos efeitos jurídicos do mesmo se tiver procedido com dolo ou culpa. A diferença entre dolo e culpa é mais relevante no Direito Penal do que no Direito Civil. Com efeito, normalmente a pena prevista legalmente para o crime doloso é mais rígida do que a pena para o crime culposo

A culpa e o dolo no ilícito penal 


       No crime doloso, o agente quer provocar o dano à vítima, enquanto que, no crime culposo, o dano não é intencional e só ocorre porque o autor do crime procedeu com negligência, imprudência ou imperícia. O dolo pode ser direto ou eventual e a culpa pode ser consciente ou inconsciente.

        No dolo direto, o agente deseja o resultado danoso. Por exemplo: João, dirigindo seu automóvel, vê à sua frente André, seu desafeto, atravessando a rua. Então João acelera o veículo com a clara intenção de atropelar André. 

      No dolo eventual, o agente não deseja diretamente o resultado. Porém sabe que há a possibilidade de que sua conduta resulte em algum dano a outrem, não se importando com essa possibilidade. Por exemplo: João dirige seu veículo em uma avenida movimentada a 120 km/h. Ele não quer, a princípio, atropelar ninguém, mas sabe que isso pode acontecer e tal possibilidade lhe é indiferente.

        Na culpa consciente o agente prevê o resultado, mas espera que ele não ocorra, supondo poder evitá-lo com a sua habilidade. Por exemplo: João dirige seu veículo em alta velocidade e, sabendo da possibilidade de ocorrer um acidente, crê ter habilidade suficiente para evitar acidentes em quaisquer situações que se apresentem. 

    Na culpa inconsciente, o agente não prevê o resultado, que, entretanto, era objetiva e subjetivamente previsível. Por exemplo, o cirurgião que esquece um instrumento cirúrgico no corpo do paciente e este acaba falecendo em razão de uma hemorragia decorrente de uma perfuração causada pelo objeto. O médico que deixou de tomar o devido cuidado - negligência -, não previu o que era previsível - afinal, em toda a cirurgia invasiva é possível, em tese, esse tipo de ocorrência -, responderá por homicídio culposo.

A culpa e o dolo no ilícito civil 


        Tendo ocorrido um ilícito civil, o agente, se sua conduta foi dolosa ou culposa, responderá integralmente pelos prejuízos causados à vítima - ou seja: a culpa e o dolo não vão influenciar no tamanho da reparação -. 

        O autor do ilícito só não responderá integralmente pelos danos causados à vítima se o acidente: a) ocorreu por culpa exclusiva da vítima ou; b) ocorreu por fato de terceiro, ou ainda; c) ocorreu devido a um caso fortuito ou a uma força maior -. As hipóteses de exclusão da responsabilidade civil serão abordadas mais detalhadamente em um futuro post.

Veja também: resolvendo uma situação fora do Judiciário 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Responsabilidade civil II: perdas e danos

Atenção: para compreender melhor este texto, é necessário primeiro ler este aqui.


             No dia 27 de março de 2014 escrevemos o seguinte: 
            
             Quando alguém, mediante ação ou omissão, comete ato ilícito - que pode ser doloso ou culposo - e causa dano a outrem, fica obrigado a reparar o dano. Essa obrigação de reparar o dano, restabelecendo, na medida do possível, a coisa danificada ao estado que era antes - em latim, status quo ante - se chama responsabilidade civil. 

             Mas pode surgir o seguinte questionamento: afinal, quais são os danos que devem ser indenizados? É pra esclarecer esse ponto que escrevemos este post.

             Tanto o ilícito penal quanto o civil têm, como já vimos, o condão de gerar, para o autor do ato, a responsabilidade de indenizar os danos causados, desde que ele tenha agido com dolo - ou seja: com a intenção de causar o dano - ou com culpa - ou seja: o agente não teve a intenção direta de causar o dano mas agiu com imprudência, negligência ou imperícia¹ -.

             Havendo nexo causal - relação de causa e efeito - entre a ação do autor e o dano, as perdas e danos decorrentes do ato danoso devem ser restituídas ao estado que era antes. As perdas e danos abrangem o dano emergente e o lucro cessante.

             O dano emergente é o prejuízo material e/ou físico e/ou moral que a vítima efetivamente teve em decorrência do ato ilícito. O lucro cessante é o rendimento/lucro que a vítima deixará de ganhar por conta do acidente.

             Exemplificando: se, em um cruzamento, Antenor avança o sinal vermelho e colide seu carro contra a moto de Vinícius, este possivelmente terá: danos materiais (o conserto da moto), danos físicos (despesas decorrentes do acidente, tais como: internação hospitalar, honorários médicos com cirurgias corretivas, cirurgia reparadora para reduzir eventual dano estético, próteses, fisioterapia, etc) e quem sabe até danos morais. 

             Esses danos descritos no parágrafo anterior constituem o dano emergente.

             E o lucro cessante? Bem, supondo que Vinícius trabalhe como motoboy autônomo, ele evidentemente não poderá trabalhar no período em que estiver hospitalizado. Ainda que não precise de hospitalização, ele não poderá trabalhar enquanto sua moto não estiver consertada. Os rendimentos que Vinícius vai deixar de ganhar enquanto não puder retornar ao trabalho são os lucros cessantes.

¹:           A imprudência é a precipitação, ou seja: o sujeito agiu antes do momento correto, ou antes que as condições estivessem adequadas àquela espécie de ação. A negligência é a atitude em que o autor, tendo em mãos o conhecimento e as ferramentas para agir da forma adequada, executa a ação de qualquer maneira, por preguiça, desleixo ou desatenção. E a imperícia é a ação daquele que, sem ter o conhecimento técnico para fazer algo, o faz, cometendo erros e prejudicando alguém no processo.

Veja também: responsabilidade civil III: responsabilidade civil III: culpa e dolo    






sábado, 29 de novembro de 2014

Os honorários advocatícios: limites


1 - Introdução

1.1 - Razões para se contratar um advogado

        
         Salvo poucas exceções - como nos pedidos de habeas corpus e em algumas causas dos juizados especiais - as pessoas em geral só podem ajuizar ações se estiverem representadas por um advogado, uma vez que este é o profissional habilitado a apresentar pedidos aos juízes e tribunais. Atuar como procurador em juízo exige uma preparação mínima - bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e a inscrição na OAB - que não são todas as pessoas que possuem.

1.2 - O preconceito contra os advogados e as suas consequências


      As pessoas sem inscrição na OAB, quando se veem envolvidas em problemas jurídicos, passam a necessitar dos serviços dos advogados. Mas, devido ao grande preconceito que existe contra essa profissão, as pessoas resistem à ideia de pagar honorários a quem lhe representa. Alguns consideram um crime contra a humanidade 'dar dinheiro pra advogado', pois imaginam erroneamente que todos os causídicos são ricos e desonestos. Então a mesma pessoa que se sujeita a pagar dois mil reais por um IPhone que será substituído em dois anos se nega a pagar duzentos reais por uma consulta com um advogado, com o detalhe de que, às vezes, a consulta evitada 'para poupar' poderia evitar um prejuízo de milhares de reais no futuro.

1.3 - A Defensoria Pública e suas dificuldades


       Em alguns municípios existe a Defensoria Pública, que é um órgão constituído por procuradores que recebem salário do Estado para defender gratuitamente os pobres. Os defensores públicos normalmente têm milhares de processos para cuidar ao mesmo tempo e, por conta disso, ficam sem condições de prestar um serviço individualizado. Além disso, para conseguir uma ficha de atendimento, os interessados precisam chegar de madrugada à sede da Defensoria e passar por uma triagem para comprovar seu estado de hipossuficiência (pobreza). É o SUS da advocacia.  

1.4 - A busca da quadratura do círculo


         Quem não consegue passar na triagem da Defensoria Pública ou não pretende utilizar seus serviços porque quer um serviço mais atencioso - que o volume de trabalho dos defensores  públicos normalmente não permite -, procura um advogado. E então alguns clientes tentam conseguir a quadratura do círculo: querem um serviço gratuito ou muito barato e bem feito, pois, se não se importassem com a qualidade do serviço, ficariam com a Defensoria mesmo. 

         É interessante observar que os honorários representam para os advogados o mesmo que o subsídio para os magistrados, o soldo para os militares, a comissão para os vendedores e o salário para o trabalhador. Mas nada disso importa: para alguns o advogado tem que trabalhar de graça ou mediante contrato de risco porque é feio pretender a obtenção de pagamento pelo seu trabalho

2 - As diversas espécies de honorários e os seus limites


           Mas afinal, quanto o advogado pode cobrar? Existe algum limite?

          O Estatuto da Advocacia - lei 8.906/94 - dispõe que os advogados têm direito a três espécies de honorários: a) os convencionados; b) os fixados por arbitramento judicial e; c) os de sucumbência. É importante observar que o advogado nunca recebe todas essas espécies de remuneração pela mesma causa, pois os honorários arbitrais - que serão explicados logo adiante - só são pagos quando não há contrato ou sucumbência. Às vezes alguns advogados recebem honorários contratuais e sucumbenciais e às vezes apenas os contratuais ou nem isso - quando, estando o causídico atuando mediante contrato de risco, o cliente perde a ação.

         Os honorários convencionados são pagos pela parte que contratou o advogado, os honorários sucumbenciais são pagos pela parte contrária se esta perder a ação e os honorários fixados por arbitramento tem seu valor fixado pelo juiz e o seu pagamento será efetuado de acordo com cada processo - p. ex.: em um processo de falência, os honorários do síndico da massa falida serão pagos com o valor arrecadado mediante a venda dos bens da própria massa falida -. 

      No caso dos honorários convencionados, o contrato de honorários pode estipular que o contratante vai pagar uma parte da verba honorária no início do processo e mais um percentual do valor que o cliente ganhar com a causa. Ou, dependendo da negociação entre as partes, pode-se estipular que o advogado só vai ganhar um percentual sobre a vantagem, a qual evidentemente só existirá em caso de vitória na ação - o já mencionado contrato de risco. 

          A limitação ao valor dos honorários convencionados é a seguinte: o advogado não pode ter mais vantagem com a causa que o seu cliente. Exemplificando: se um advogado tem um contrato que lhe garante 50% da vantagem auferida pelo cliente em um processo e o juiz fixa 10% de verba sucumbencial, esse advogado poderá ganhar, com o processo, mais do que o seu cliente (60% a 40%, na hipótese), o que não é permitido. Em caso de sucumbência a 10%, o advogado poderia ganhar no máximo 45% da vantagem e então o cliente ficaria com 55% e o advogado 55%: 45% de honorários contratuais e 10% de honorários sucumbenciais.  

       Os honorários sucumbenciais são fixados na sentença - em valor nunca superior a 20% da condenação - e são pagos pela parte que perdeu a ação ao advogado da parte que a venceu. Esse valor é pago ao advogado porque a Lei 8.906/94 estipulou que os honorários de sucumbência pertencem ao advogado. Recentemente a juíza Federal substituta Catarina Volkart Pinto proferiu uma decisão interlocutória determinando que os honorários sucumbenciais deveriam ser pagos à parte que contratou o advogado. Há mais detalhes sobre essa decisão aqui.

        Com todo o respeito à eminente magistrada, e sem entrar em detalhes sobre a consistência de seus argumentos - já que essa espécie de discussão é mais fácil de ser compreendida por juristas do que por não juristas e iniciá-la aqui seria contrário à pretensão de simplicidade deste blog -, se esse entendimento se cristalizar isso poderá trazer duas consequências: a) poucos advogados vão querer trabalhar mediante contrato de risco, e isso levaria todos os cidadãos que não podem pagar adiantamento aos seus advogados às portas da já sobrecarregada Defensoria Pública, ou; b) os advogados que topassem trabalhar mediante contrato de risco só o aceitariam se o percentual fosse aumentado, e isso elevaria o custo dos honorários contratuais dos costumeiros 20% a 30% ou até mais.









sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Fraude contra credores

Para compreender este post, é importante antes ler este e este.


Introdução           


           Há em nosso País muitas pessoas endividadas. Algumas dessas pessoas contraíram dívidas por motivos justificáveis: desemprego, crise econômica, doença na família que desequilibrou o orçamento, etc. Já algumas outras pessoas decidiram ter um estilo de vida em que simplesmente não pagam suas contas. 

           É lógico que, se João não paga suas contas, seus credores logo estarão protestando seus títulos e ajuizando ações de cobrança/execução contra ele. O sucesso dessas ações depende da existência de bens livres e desembaraçados em nome de João. Denominam-se livres e desembaraçados os bens do devedor que não estão gravados com alguma restrição: hipoteca, alienação fiduciária, arresto ou penhora preexistentes...

          Ou seja: se o devedor possui bens penhoráveis, o credor tem chance de receber seu crédito, mas se o devedor não possui nada - ou pelo menos não possui nada em seu nome -, a cobrança da dívida fracassa e o credor fica a ver navios. E é por saber disso que alguns devedores vivem um estilo de vida superior ao que seus rendimentos normalmente suportariam: eles escolhem não honrar todos os seus compromissos.

Estratégias dos devedores


Adquirir bens em nome de terceiros

       Quem tem a pretensão de não honrar os próprios compromissos evita adquirir bens em seu próprio nome. E quando adquire bens, ou o faz usando o nome de outras pessoas - o popular laranja -, ou adquire os bens mediante financiamento - mesmo que possa comprar à vista -. Se for comprado mediante financiamento, o bem ficará com uma restrição - hipoteca, alienação fiduciária, etc. - e não poderá ser penhorado. É claro que o credor pode pedir a penhora sobre os direitos e ações que o devedor possui sobre o bem alienado, porém quando isso ocorre o devedor normalmente 'esquece' de pagar as demais parcelas do financiamento.  

Venda em fraude à execução

     Essa é uma das estratégias mais comuns: o sujeito é citado para responder a uma ação que provavelmente perderá. Então ele faz vendas - verdadeiras ou simuladas - ou doações de todos os bens passíveis de penhora que estão em seu nome. Assim, quando a ação chega à fase executiva, o credor não consegue localizar bens no nome do executado para requerer a penhora. 

        Se o credor conseguir provar que a venda/doação foi feita para frustrar a execução, o juiz profere sentença anulando o negócio e determina a penhora do bem.

O falso divórcio 


         Às vezes, quando o devedor é casado - ou vive em união estável -, ele entra em conluio com seu cônjuge para fazer um divórcio simulado. Naturalmente isso ocorre após o início de uma ação que pode fazer com que ele tenha parte do seu patrimônio penhorado e levado a leilão.

        O procedimento utilizado normalmente é: o casal continua coabitando normalmente e realiza um divórcio consensual, em que o marido fica com as dívidas do casal e a mulher fica com os ativos - bens e direitos -. Quando o credor do marido vai procurar bens em seu nome, não encontra absolutamente nada. 

       Também nesse caso cabe ao credor fazer a prova da fraude - prova essa um tanto difícil de se fazer - e pedir que a penhora recaia sobre o patrimônio do casal 'divorciado'.

A ação trabalhista de um cônjuge contra o outro


         Há pessoas que, ao fundar uma empresa, assinam a CTPS - Carteira de Trabalho e Previdência Social - de seus cônjuges. O cônjuge 'empregado' nunca aparece na empresa para trabalhar. Então um dia a empresa é processada e o que é que o casal faz? O cônjuge 'empregado/reclamante' ajuíza uma ação trabalhista contra o 'empregador/reclamado'. 

         Quando isso ocorre, o reclamado não contesta a ação e deixa a mesma correr em revelia - para que a tramitação ocorra mais rápido -. Então o cônjuge 'empregado' vence a causa e pede a execução dos bens do 'patrão', que continua sem se defender. 

         Os bens são então penhorados, avaliados, leiloados e o produto do leilão é entregue ao  cônjuge 'empregado', evitando, assim, que o dinheiro proveniente desse leilão fosse utilizado para pagar outras dívidas, sejam elas fiscais, trabalhistas ou decorrentes de empréstimos não pagos. 

      Nesse tipo de situação, o credor tem que examinar a possibilidade de se ajuizar uma ação rescísória da sentença trabalhista que concedeu o crédito ao cônjuge empregado.

Conclusão


        Enfim, essas são algumas das estrategias usadas pelos devedores para frustrar os credores de suas dívidas. Existem outros meios que os caloteiros podem usar para esse fim - enviar dinheiro para o Exterior sem comunicar a Receita Federal, por exemplo -, mas acreditamos que os métodos mencionados são suficientes para que os leitores tenham uma ideia de com o que estão lidando. Não é impossível fazer a cobrança contra um caloteiro contumaz, mas é custoso em termos de tempo, dinheiro - necessário para fazer buscas de bens em cartórios e investigações - e energia emocional.





sábado, 15 de novembro de 2014

O profissional liberal e suas obrigações

Para compreender melhor este post, é conveniente ler primeiro esse aqui.


Introdução    


   Muitas pessoas acreditam que um profissional liberal tem a obrigação de obter o resultado pretendido por seu cliente, mas isso não é verdade. O profissional liberal normalmente só tem a obrigação de utilizar todos os meios técnicos existentes para buscar a obtenção do resultado. Mas antes de prosseguirmos, precisamos definir quem é profissional liberal.

O profissional liberal


      O profissional liberal é aquele trabalhador que exerce a sua atividade de forma autônoma, ou seja: sem vínculo empregatício, normalmente trabalhando para mais de um tomador de serviço. É muito comum que prestadores de serviços - médicos, engenheiros, arquitetos, advogados - sejam profissionais liberais. 

       O profissional liberal precisa, no exercício de seu trabalho, utilizar toda a perícia, todo o cuidado, toda a diligência e todos os meios técnicos disponíveis para tentar obter para seu cliente aquilo que o cliente almeja. Mas a eventual não obtenção do resultado por razões alheias à competência técnica do profissional não gera o dever deste indenizar o seu cliente. 

       Em outras palavras: o médico não tem a obrigação de curar o paciente - obrigação de resultado - e sim a obrigação de fazer tudo o que for possível para tentar obter a cura - obrigação de meio -. O advogado não tem a obrigação de vencer a causa e sim o dever de utilizar todos os recursos jurídicos disponíveis para tentar obter a vitória.

Promessa de resultado


      A exceção à regra mencionada acima é aquele caso em que o profissional promete o resultado - por exemplo: o cirurgião plástico que garantir que a paciente vai ficar com o nariz igual ao da Gisele Bündchen após uma rinoplastia -. Se tiver ocorrido a promessa do resultado, então o profissional responderá civilmente pela sua não obtenção e só se eximirá do dever de indenizar o cliente se demonstrar que não foi por sua culpa que o resultado não foi obtido. 

      Ou seja: se houve a promessa de um determinado resultado e tal resultado não foi obtido, o profissional tem o ônus de provar que não foi por sua culpa que se frustrou a busca por esse resultado. Caso ele não consiga fazer essa prova terá que indenizar o cliente pelas perdas e danos decorrentes da não obtenção da meta definida por ele - pelo cliente -, 

         Sobre a cirurgia plástica, há que se fazer mais algumas considerações: existe a cirurgia plástica reparadora e a cirurgia plástica meramente estética. Aquela visa reduzir o dano estético produzido por um acidente, ou por um defeito congênito ou por uma cirurgia estética, enquanto que esta tem o objetivo único de embelezar o paciente.

         Na cirurgia reparadora o médico tem apenas a obrigação de meio, ou seja: caso não se obtenha o resultado, não há que se falar em responsabilidade do médico, a menos que o paciente prove que o resultado não foi obtido por culpa do profissional.

       Já na cirurgia embelezadora a situação pode ser diferente: se houver a promessa de resultado, então o médico tem a obrigação de obter o resultado prometido, respondendo pela sua não obtenção como mencionado anteriormente.

Veja também: fraude contra credores

sábado, 8 de novembro de 2014

Oportunidade perdida: antecipação de tutela


          
          Carlos era estudante de Direito e estava fazendo um estágio na Justiça Federal. Um dia, em uma audiência, ele assistiu a uma cena em que o advogado do autor poderia ter solucionado o problema do cliente na hora. Porém o advogado 'cochilou' e a situação demorou mais um ou dois meses para ser resolvida. 

           Tratava-se de uma ação previdenciária em que o cliente - que chamaremos de João da Silva - requeria a aposentadoria por tempo de contribuição. No decorrer da audiência, o Sr. João descreveu sua situação ao juiz: "doutor, eu vim a pé até a audiência porque não tinha dinheiro para o ônibus, eu não tenho nem o que comer". 

         Nisso o juiz anunciou o seguinte: "está encerrada a instrução, eu vou prolatar a sentença no prazo de X dias e já aviso que vou julgar procedente a ação". Em outros termos: o juiz analisou as provas, viu que o Sr. João tinha razão e devia ser aposentado mesmo. 

        Esse aviso do juiz foi uma senha para que o advogado pedisse a antecipação de tutela. A antecipação de tutela pode ser requerida no curso do processo se o juiz se convencer da veracidade do pedido inicial e se: a) houver fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação - aplicável ao caso do Sr. João -, ou; b) fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu (art. 273 do CPC).  

            Ora, se o juiz disse que ia julgar a ação procedente é porque ele tinha o pedido do autor como certo e comprovado. O risco na demora da ação demonstrava o fundado receio de dano irreparável - devido à situação crítica vivida pelo autor, que estava a padecer de fome -. Havia naquele caso concreto fundamento jurídico para se requerer a antecipação de tutela, porém o advogado não percebeu e deixou a oportunidade passar. 

            É claro que o juiz não poderia dizer ao advogado: doutor, peça a antecipação de tutela que eu a concedo imediatamente. Nem o juiz podia fazer isso - para não ser acusado de parcialidade, o que levaria ao seu afastamento do processo e à anulação e repetição dos atos processuais realizados - e muito menos o procurador do INSS - pois aí ele estaria advogando contra o seu constituinte, no caso, a autarquia federal -.

          Lamentável essa falta de atenção do procurador do autor, que poderia ter obtido para seu cliente o pagamento da primeira parcela da aposentadoria no mesmo dia e, ao invés disso, fez com que o postulante tivesse que sobreviver às duras penas por mais um ou dois meses.

Veja também: o profissional liberal e suas obrigações

sábado, 1 de novembro de 2014

Quando é cabível a equiparação salarial?


       
         Uma dúvida que aflige alguns trabalhadores é: em quais casos é cabível a ação de equiparação salarial? A questão surge porque em algumas empresas há empregados que recebem salários superiores aos dos colegas mesmo exercendo a mesma função. Então os funcionários que ganham menos ficam a se perguntar se essa prática não é ilegal.

       Ora, a princípio, trabalhadores que exercem a mesma função devem receber salários iguais, porém essa regra tem algumas condições. A CLT estabelece em que condições pode ocorrer a equiparação exigindo como requisitos que:

1 - o trabalho seja prestado ao mesmo empregador;

        O operador de empilhadeira da empresa A não pode exigir o mesmo salário do operador de empilhadeira da empresa B, pois são empresas diferentes.

2 - na mesma localidade;

          É considerado exercido na mesma localidade o serviço prestado no mesmo município. Admite-se, nas regiões metropolitanas, equiparação salarial entre os empregados da mesma empresa que prestam serviços em unidades situadas em municípios diferentes.

3 - entre empregados da mesma função;

        Ainda que os empregados tenham cargos com nomes diferentes, o que conta é a espécie de trabalho que é executada, e não o nome do cargo.

4 - com diferença de tempo na função não superior a dois anos;

          Quem começou a trabalhar operando empilhadeira no ano passado não pode pretender receber o mesmo salário de quem está nessa função há dez anos.

5 - que exerça o trabalho com a mesma produtividade;

         Se o trabalho é remunerado pelas horas, quem trabalha o mesmo número de horas que o colega de salário superior - o paradigma - tem direito a um salário igual ao do paradigma. Se a remuneração é por peça produzida, pode haver salário maior para quem produz uma maior quantidade de peças - ou seja: nessa hipótese não é ilegal a disparidade salarial -.

6 - que tenha a mesma perfeição técnica;

          No caso de remuneração por peça produzida, a qualidade do serviço também pode influenciar no salário - ou seja: o trabalhador só pode postular salário igual ao do paradigma se o seu trabalho for do mesmo nível de perfeição que o dele - e não apenas a quantidade de serviço executado.

7 - e que exista simultaneidade na prestação de serviços.

         Pode haver diferenças salariais em relação ao turno em que o serviço é prestado em razão do adicional noturno.

         Ou seja: quem exerce função igual deve receber salário igual sim, desde que sejam observadas as condições acima. O direito à equiparação salarial pode ser reclamado ainda que o reclamante tenha saído do emprego - observado o prazo de dois anos para o ajuizamento da ação -. Ajuizada a ação, podem ser pleiteadas as diferenças salariais dos cinco anos anteriores ao ajuizamento.

Veja também: antecipação de tutela






sábado, 25 de outubro de 2014

O filho do vizinho quebrou a minha vidraça. E agora?

Atenção: para entender melhor este post, é conveniente ler primeiro esse aqui.


       
          De acordo com o Código Civil, 'aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito'. Mas e no caso em que o autor do ato ilícito é um incapaz, como é que fica?

           Bem, cabe ao autor do ato ilícito a responsabilidade de restaurar a coisa lesada ao status quo ante - estado que era antes -, porém nem sempre é possível fazer as coisas voltarem a ser como eram - como por exemplo no caso em que uma pessoa é atropelada por um automóvel e morre em razão do acidente -. Mas mesmo que não seja possível restaurar a coisa lesada de forma completa, será devida uma indenização que ajude a vítima ou os seus familiares a se recuperarem física e/ou psicologicamente. 

             No caso dos incapazes, a regra é que a pessoa legalmente responsável por eles responda pelos danos provocados pelos atos ilícitos. Assim, os pais respondem pelos atos ilícitos de seus filhos - ou seja: os bens dos pais poderão ser penhorados para pagamento da indenização devida pelo ato ilícito do filho -. 

             Se a pessoa responsável pela criança não é um dos pais e sim um parente que detém a guarda ou um tutor, essa pessoa é que será responsável pelos atos ilícitos cometidos pela criança. Já a responsabilidade pelos atos ilícitos cometidos pelos mentalmente enfermos interditados será de seus curadores. 

          Para ajuizar uma ação, além dos documentos de praxe - cópia do RG e CPF do autor, comprovantes de renda e de residência -, é necessário ter em mãos provas do ato ilícito - p. ex.: gravação de vídeo de uma câmera de segurança, depoimentos de testemunhas que comprovem a autoria do ato, etc. - e do dano - p. ex.: nota fiscal da despesa decorrente do ato ilícito e orçamentos feitos em pelo menos três lojas antes do conserto -.

Veja também: equiparação salarial

sábado, 18 de outubro de 2014

A sonegação fiscal e a suspensão da punibilidade


              Quando alguém comete um crime contra a ordem tributária, nasce para o Estado o direito de punir o autor desse crime. Porém se o contribuinte procurar a Fazenda Pública e fizer o parcelamento da dívida antes do recebimento da denúncia, a pretensão punitiva fica suspensa enquanto durar o parcelamento. 

             Ou seja: até que o juiz receba a denúncia pelo crime tributário cometido, há a possibilidade de parcelar a dívida e com isso evitar uma ação penal.

          Enquanto durar o parcelamento, a pretensão punitiva estatal fica suspensa e não corre a prescrição do crime. Ou seja: se o contribuinte deixar de pagar as parcelas do acordo efetuado, o Estado volta a ter o chamado jus puniendi. Mas se ocorrer o contrário, ou seja, se o contribuinte pagar a totalidade do parcelamento, extingue-se a punibilidade.

Veja também: responsabilidade civil pelos atos ilícitos dos incapazes

sábado, 11 de outubro de 2014

Bem impenhorável: vai a leilão ou não vai?


Breve história do processo de execução de dívidas
         
          Houve uma época em que o devedor respondia pessoalmente pela sua dívida. Ou seja: a pessoa do devedor é que respondia pela dívida. Na antiga Roma o credor podia se apropriar da pessoa do devedor, escravizá-lo e até vendê-lo em partes - há controvérsias quanto a esse último detalhe -. Já a partir do Iluminismo, a responsabilidade pela dívida saiu da pessoa do devedor e passou a abranger apenas o seu patrimônio - bens, direitos e ações -, situação essa que perdura até hoje. 

Como é feita a cobrança de dívidas hoje
           
        Atualmente, se alguém é executado judicialmente por uma dívida que possui, o Oficial de Justiça vai até a residência do devedor - ou até o local em que os bens do devedor se encontram - e efetua a penhora. A penhora é um ato pelo qual o Estado - presente através do Poder Judiciário - retira bens do patrimônio do devedor e, ou leiloa esses bens para angariar dinheiro para pagar o credor ou entrega os próprios bens ao credor. Essa última hipótese é chamada de adjudicação e ocorre quando, não havendo arrematantes no leilão, o credor, através de seu advogado, requerer ao juiz a adjudicação do bem.

Bens impenhoráveis         

           Nem todos os bens do devedor são passíveis de penhora. Isso se fundamenta no fato de que, se fosse possível penhorar todos os bens do devedor, muitos devedores ficariam em uma ruína financeira absoluta. 
      
        Eis algumas das categorias de bens impenhoráveis: primeiramente o salário - remuneração de funcionário público ou trabalhador em atividade, pro labore de empresário, aposentadoria, etc -, que só pode ser penhorado para pagamento de pensão alimentícia, e, mesmo assim, apenas em parte e não em sua totalidade. As aplicações financeiras, até o limite de 40 salários mínimos, também são impenhoráveis.

           Se o devedor possuir apenas um bem imóvel residencial no qual ele mora com sua família, esse bem é impenhorável. A impenhorabilidade do único imóvel residencial continua valendo mesmo no caso em que o devedor reside em outro local, desde que ele alugue a casa da qual é dono para, com os proventos obtidos com esse aluguel, pagar a locação da casa onde mora. Já se firmou nos tribunais brasileiros o entendimento de que há impenhorabilidade também no caso em que o devedor é solteiro, viúvo ou separado, se ele possuir apenas um imóvel residencial.

           Também são impenhoráveis os móveis, que só poderão ser penhorados em caso de duplicidade - por exemplo: se a pessoa possui duas TVs, uma delas pode ser penhorada - ou se o devedor possuir móveis luxuosos - por exemplo: uma peça decorativa assinada por um artista famoso com alto valor de mercado -.

           Os instrumentos de trabalho também não podem ser penhorados, desde que sejam necessários ou úteis ao exercício de qualquer atividade ou profissão. Já houve um julgamento em que se decidiu determinar o levantamento - cancelamento - da penhora que havia sido realizada sobre o semirreboque - carreta - que pertencia a um caminhoneiro, por se entender que o semirreboque era útil ao exercício da profissão.  

sábado, 4 de outubro de 2014

A imprensa e a exposição de acusados


     Prezado leitor, propomos que você faça o seguinte exercício: por um momento imagine a si mesmo no lugar do sujeito que, inocente, é acusado da prática de um crime e tem o seu rosto exposto para milhões de pessoas, não podendo mais sair na rua devido à possibilidade de ser linchado. 

        Então, caso você esteja respondendo a um processo criminal em liberdade, você não pode mais estudar, trabalhar, namorar ou simplesmente passear pela rua da tua cidade porque um diretor de um programa jornalístico precisava aumentar seus índices de audiência. Terrível isso, não é?

      Antigamente era comum nos jornais e revistas afirmações do tipo: "este homem matou X pessoas" junto à foto da pessoa acusada. Porém em alguns desses casos o acusado acabou demonstrando sua inocência no curso do processo e, por conta disso, vários jornais, revistas e emissoras de televisão foram condenados a pagar vultosas indenizações. 

        Esses prejuízos fizeram com que a linguagem utilizada pelo jornalismo responsável se alterasse para frases do tipo: "este homem é acusado de ter matado X pessoas". A distância entre dizer que Pedro matou Paulo e dizer que Pedro é acusado de ter matado Paulo é enorme e faz toda a diferença na hipótese de um processo contra o órgão de imprensa que expôs os fatos. 

       Só que infelizmente ainda há alguns órgãos de imprensa que, ávidos pela audiência, jogam a prudência às favas e não se importam com a possibilidade de que o acusado seja inocente. Após fazerem alguns cálculos - 'tal percentual de audiência vai aumentar o faturamento com anúncios em tantos milhões e então não importa que um ou outro réu nos processe e eventualmente até ganhe a ação, pois nós estaremos no lucro'. 'Basta que paguemos o departamento jurídico em dia e então podemos distribuir acusações a rodo' -. 

        Ora, exigir mais prudência na divulgação de acusados em inquéritos policiais ou ações criminais não é proteger bandidos, é deixar que a Polícia e a Justiça busquem a veracidade dos fatos sem a paixão que a pressão da exposição pública provoca.  

       O caminho entre alguém ser acusado da prática de um crime e ser considerado culpado por esse crime é longo. Vejamos: quando ocorre um fato criminoso e alguém é suspeito da autoria, a Polícia passa a investigar o cidadão, que, nesta fase, é chamado de investigado. Se entender que há elementos para o indiciamento - prova da materialidade e indícios de autoria -, o delegado indicia o sujeito, que passa a ser chamado de indiciado. O inquérito policial então vai para o Ministério Público, que o examina e, se entender que for o caso, faz a denúncia, o que transforma o indiciado em denunciado. O juiz, então, se entender que há elementos suficientes para instaurar um processo, recebe a denúncia, e a partir daí o sujeito passa a ser chamado de réu.

        A dúvida que pode surgir é: o fato de alguém ser réu em um processo criminal significa que ele é necessariamente culpado? Bem, a respeito desse assunto, o artigo 5º, inciso LVII dar Constituição Federal diz que 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória'. Ou seja: a Constituição dispõe que, até que haja uma sentença penal condenando o réu da qual já não caiba mais nenhum recurso, presume-se que o réu é inocente.

       Concluindo, o que o jornalismo irresponsável - felizmente minoritário - faz com a honra e a imagem dos acusados é monstruoso - especialmente pelo fato de que alguns dos acusados são inocentes -. O cidadão de bem vê os índices de criminalidade do País crescendo exponencialmente, então assiste a esses programas sensacionalistas e vê meliantes debochando da Polícia e da Justiça, o que o faz sentir um misto de desespero e impotência. Passa então a desejar um sistema judicial que condene o réu sem dar a ele o direito de se defender - o que só seria possível numa ditadura -. Mas será que se o acusado fosse ele não iria, então, preferir ter o direito a um julgamento justo? É essa indagação que propomos para a reflexão do leitor.  

Veja também: Bem impenhoravel: vai a leilão ou não?




quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Advogado do diabo: de onde vem essa expressão?


            Nos processos de canonização havia um membro da Cúria Romana responsável por apontar falhas no processo, indícios de falsidade dos milagres atribuídos ao candidato a santo, etc. Esse membro da Cúria recebeu a alcunha de advogado do diabo. 

             A expressão é usada para designar, em uma conversa, aquela pessoa que sempre está disposta a contrariar a tudo e a todos.

Veja também: a imprensa e a exposição de acusados

sábado, 27 de setembro de 2014

Diferença entre RPV e precatórios

Atenção: antes de ler o texto abaixo, saiba mais sobre precatórios clicando aqui, aqui e aqui.



           Recentemente compartilhamos na linha do tempo da nossa página no Facebook a seguinte notícia: dívida pública com vários autores de processo pode ser paga em RPV

     Alguns leitores nos contataram em privado perguntando sobre o significado de algumas expressões usadas na reportagem (litisconsórcio ativo facultativo, precatórios e requisição de pequeno valor). Decidimos então escrever este post, afinal, a página é destinada justamente a quem não é da área jurídica. 

           Vamos abordar os assuntos por partes:

1 - Litisconsórcio ativo facultativo


           Ocorre litisconsórcio quando há mais de um autor - litisconsórcio ativo - e/ou mais de um réu - litisconsórcio passivo - no mesmo processo.

           Exemplos: 

a) Litisconsórcio ativo: João tem um crédito contra Paulo e vem a falecer. Então todos os herdeiros de João - Mateus, Marcos e Lucas - ajuízam uma ação contra Paulo visando a cobrança dos valores que este (Paulo) devia ao de cujus (João).

b) Litisconsórcio passivo: João está em débito com um banco e vem a falecer. Como os herdeiros respondem pela dívida do falecido até o limite das forças da herança, o banco ajuíza uma ação de cobrança contra todos os herdeiros do devedor - na hipótese, Mateus, Marcos e Lucas -.  

        Se o litisconsórcio decorre da lei - como nos exemplos acima -, se trata de um litisconsórcio necessário. Já nos casos em que a lei permite que haja uma ação separada para cada parte e as pessoas optam por litigar em conjunto, se trata de um litisconsórcio facultativo. Normalmente são os advogados que tomam a decisão de reunir várias pessoas no polo ativo ou no polo passivo de uma ação e o fazem por economia de material/trabalho. 

Exemplificando: o advogado Pandolfo, conhecido por mover ações contra empresas de telefonia, recebe, em um breve espaço de tempo, procurações de 100 clientes que foram prejudicados pela empresa Sinalruim. Então, ao invés de ajuizar 100 ações com um cliente em cada, ele ajuiza 10 ações com 10 clientes em cada uma. Assim, quando ele tiver que fazer petições, por exemplo, ele terá que fazer 10 petições ao invés de 100. E como se trata de ações movidas contra a mesma empresa, isso é juridicamente possível.

2 - Precatórios


            Em um post anterior, escrevemos sobre os precatórios o seguinte: 

Os precatórios judiciais são a forma da Fazenda Pública pagar as dívidas que possui em decorrência da perda de ações judiciais. O procedimento para se executar um crédito contra o Estado – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – é diferente do procedimento utilizado para se executar um crédito contra uma pessoa física ou contra uma empresa.

Quando uma pessoa física ou uma empresa perde uma ação judicial e essa ação vai para a fase executiva – fase de cobrança -, são os bens da pessoa que respondem pelo débito. Ou seja: o juiz, a pedido do exequente/credor, determina que o Oficial de Justiça penhore bens do devedor. A seguir, os bens são leiloados e, do dinheiro arrecadado com o leilão, pagam-se o débito, as custas judiciais e os honorários devidos ao advogado do exeqüente – chamados honorários sucumbenciais -. Caso sobre algum valor após serem pagos todos esses encargos, o que sobra é devolvido ao devedor.

Só que quando o Estado perde uma ação judicial e esta, depois de esgotados todos os recursos, vai para a fase de cobrança, há um obstáculo: os bens públicos não são passíveis de penhora. E então, como é que se faz para que o credor receba o que lhe é devido? Nesse caso, o juiz, a pedido do exequente, manda o Escrivão do cartório da vara onde atua enviar um ofício ao Tribunal, requerendo a expedição de um precatório judicial em favor do credor. Lá na Secretaria de Precatórios, esse pedido entra em uma fila em ordem cronológica e fica esperando a sua vez de ser pago.

A Fazenda Pública não paga os precatórios com a celeridade que deveria. De fato, por lei, os precatórios inscritos no orçamento até a metade de 2014 – por exemplo – deveriam ser pagos até o fim de 2015. Mas não é isso o que acontece na prática. Há precatórios que levam décadas para serem pagos

Isso ocorre porque esses pagamentos dependem do valor destinado a eles na lei orçamentária e, para os administradores públicos, fazer asfalto de baixa qualidade dá mais voto do que pagar precatórios. Por conta dessa demora, criou-se um mercado de compra e venda de precatórios, que mencionamos nos posts indicados acima da foto do início deste post. 

3 - Requisição de Pequeno Valor


        Se alguém é credor do Estado até um certo limite, poderá requisitar que se faça a execução contra a Fazenda Pública mediante requisição de pequeno valor - RPV -. A requisição de pequeno valor evita a expedição de precatório e normalmente é paga em poucos meses, evitando que o credor tenha que esperar anos e anos pelo pagamento de um precatório

         É importante observar que, se alguém tiver um crédito de valor superior ao limite da RPV, ele poderá renunciar a parcela do crédito que passa desse limite para requerer a expedição de uma requisição de pequeno valor e receber seu crédito - ou a parte que sobrou após a renúncia - de forma mais rápida.  

           Os limites para que seja possível requisitar a RPV são os seguintes:

a) Até 60 salários mínimos, se o crédito for contra a Fazenda Pública federal;
b) Até 40 salários mínimos¹, se o crédito for contra a Fazenda Pública estadual;
c) Até 30 salários mínimos², se o crédito for contra a Fazenda Pública municipal.

        Para concluir, e retomando a notícia do Conjur mencionada no início do post, o que o STF decidiu é que, se em uma ação contra a Fazenda Pública há mais de um autor em litisconsórcio facultativo e o crédito de cada um deles é inferior ao limite da RPV, o pagamento não precisa ser feito por precatório, podendo ser feito por RPV. 

¹ - Esse limite só é válido se não houver lei estadual estabelecendo outro valor.
² - Esse limite só é válido se não houver lei municipal estabelecendo outro valor.




sábado, 20 de setembro de 2014

Assédio Sexual



           A sexualidade faz parte da natureza humana. Porém, para que o ato sexual seja lícito, ambas as partes envolvidas devem ter o poder de decidir se querem fazer sexo, quando, onde, como e com quem, ou seja: nada pode interferir na liberdade de uma pessoa recusar as investidas sexuais de outra, pois. se essa liberdade for restringida, tem-se, em tese, um ato criminoso. 

        Neste post vamos nos ater ao crime de assédio, em que a conduta do autor, apesar de não ser tão violenta quanto no estupro, restringe - ou procura restringir - a liberdade da vítima. Só pode haver assédio sexual se o autor do crime tem, por exercer um determinado cargo em empresa - ou ONG ou instituição religiosa -, uma certa dose de poder sobre a vítima

        O autor, então, constrange a vítima  a lhe conceder favores sexuais utilizando sua superioridade hierárquica. Ou seja: se a vítima resistir, o autor pode fazer uso de seu poder para se vingar, anulando ou reduzindo a liberdade da vítima de dizer não. Por exemplo: "saia comigo ou eu te demito". O autor também comete crime de assédio se prometer benefícios à vítima. Exemplificando: "saia comigo e ganharás um aumento/promoção". 

      É importante observar que, quando ambas as partes exercem o mesmo cargo ou função na empresa não há crime de assédio pois não há, nesse caso, ascendência hierárquica entre o (a) assediador (a) e o (a) assediado (a). 

           Em uma empresa, ONG ou órgão público, caso ocorra um crime dessa espécie, pode-se ajuizar uma ação de indenização por dano moral contra o autor e contra a empresa, A responsabilidade da empresa consiste no fato de que a mesma responde objetivamente pelos atos ilícitos de seus funcionários. 

           Em resumo: para que se configure o crime de assédio sexual, é necessário que o autor do crime tenha superioridade hierárquica em relação à vítima e a constranja, prometendo beneficiá-la caso ela lhe conceda favores sexuais ou ameaçando prejudicá-la no caso de ela não ceder. Não é preciso que a vítima ceda à pressão do autor: basta que haja o constrangimento.



sábado, 13 de setembro de 2014

Salvados são isentos de ICMS



        De acordo com a Súmula Vinculante n.º 32 do STF, "não incide ICMS sobre a alienação de salvados de sinistro pelas seguradoras". O que nos leva a duas questões: o que são sinistros e o que são salvados?
           Sinistros são atos ou fatos danosos que ocorrem aos bens segurados. Caso o sinistro ocorrido esteja coberto por um seguro, a seguradora terá a obrigação de pagar a indenização devida ao segurado de acordo com os parâmetros indenizatórios constantes da apólice. 
       E quanto aos bens que ficaram intactos apesar do sinistro - como a parte da carga de um caminhão tombado que não se danificou com o acidente -? Ora, esses bens, denominados salvados, são recolhidos pela seguradora e vendidos em leilão.
       Através da Súmula Vinculante n.º 32, o STF consolidou o entendimento de que o arrematante das mercadorias vendidas por uma seguradora em leilão é isento do ICMS incidente sobre os produtos arrematados, desde que tais produtos sejam salvados de sinistros,
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Veja também: 
Assédio sexual
Decifrando o Direito